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160 anos do espiritismo no Brasil: por que religião 'vingou' tanto no país?


Sessão de 'mesas girantes' em Paris, em gravura de 1853; esse tipo de evento foi ponto de partida para Kardec 'codificar' o espiritismo

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Há mais de 200 anos, na cidade francesa de Lyon, nascia Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869).

Décadas depois, ele ficaria mais conhecido por seu pseudônimo, Allan Kardec, e fundaria o espiritismo.

Provavelmente nem Kardec nem seus contemporâneos poderiam imaginar que, no século 20, a religião floresceria fortemente não na França, mas do outro lado do Oceano Atlântico — no Brasil.

"Embora a França seja o berço do Allan Kardec, o francês médio não sabe que o que é espiritismo", resume o palestrante e escritor espírita Ricardo Ribeiro Alves, em entrevista à BBC News Brasil.

Especialistas dizem que é difícil precisar quantos espíritas existem no mundo, mas parece consenso a constatação de que o Brasil se tornou o país onde o espiritismo mais "deu certo".

Segundo o filósofo e antropólogo Bernardo Lewgoy, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), poucos países registram essa corrente religiosa em seus censos e algumas estimativas incluem simpatizantes e frequentadores ocasionais.

O Conselho Espírita Internacional opta por consolidar estimativas fornecidas pelas federações de cada país. O dado mais recente afirma que há 13 milhões de adeptos do espiritismo no mundo.

Já o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registra o número de espiritas no Brasil desde 1940.

Dados do Censo mais recente, de 2022, constataram que 3,18 milhões de brasileiros seguem o espiritismo — 1,8% da população. A contagem considera pessoas com mais de 10 anos.

Apesar dos números relevantes, a fatia ocupada pelos espíritas no Censo diminuiu em relação ao levantamento de 2010, quando eles representavam 2,2% da população brasileira — e um total absoluto de 3,56 milhões de adeptos.

Entretanto, segundo a Federação Espírita Brasileira, há 30 milhões de brasileiros que simpatizam com a doutrina espírita, mas declaram ter outras religiões.

Embora o cenário recente seja de queda no número de espíritas contabilizados no Brasil, por que o espiritismo deu tão certo aqui e nem tanto em outros países, inclusive na França? E o que explica a considerável queda na última década no Brasil?

Da hostilidade católica à popularização no Brasil

O Livro dos Espíritos lançou as bases de religião criada por Kardec

Felix Lima/BBC

O pedagogo, professor e tradutor Hippolyte Léon Denizard Rivail inicialmente reagiu com ceticismo às "mesas girantes", encontros mediúnicos que eram moda na França daquele tempo.

Mas, curioso, ele passou a frequentar tais reuniões — e começou a se convencer de os espíritos realmente estavam se comunicando ali.

Em 1857, ele lançou O Livro dos Espíritos, obra que fundamentou as bases do espiritismo. Kardec, no entanto, não acreditava ter criado uma religião, e sim "codificado" a obra dos espíritos através de um método científico.

Ele colocava perguntas sistemáticas aos espíritos e a compilava o que seria essa comunicação. Portanto, colocou no papel observações sobre acontecimentos que já aconteciam antes, como sessões com médiuns e relatos de manifestações de espíritos.

Em sua obra, o francês aglutinou os valores da religiosidade cristã, da ciência e da filosofia daquela Europa do século 19.

No Brasil, o espiritismo teve como marco de chegada 17 de setembro de 1865, há 160 anos.

Naquele dia, ocorreu a primeira sessão espírita no Brasil, em Salvador, liderada pelo jornalista Luís Olimpio Teles de Menezes (1828-1893).

Kardec não acreditava ter criado uma religião mas 'codificado' a obra dos espíritos através de um método científico

Domínio Público

De acordo com Lewgoy, o frisson inicial ocorreu entre integrantes da elite urbana letrada, principalmente "católicos não dogmáticos".

"Nesse período, o espiritismo era visto pela Igreja [Católica] mais como uma filosofia ameaçadora do que como um concorrente religioso", afirma Lewgoy, autor do livro O Grande Mediador: Chico Xavier e a Cultura Brasileira.

Mas havia hostilidades por parte da dominante Igreja Católica: mesmo de base cristã, os espíritas acreditam em reencarnação e em comunicação com os mortos — crenças que vão de encontro ao catolicismo.

Em um primeiro momento, os dogmáticos católicos aproximaram os kardecistas dos praticantes de religiões africanas — que eram profundamente estigmatizados no século 19.

No entanto, algumas características da prática espírita no Brasil facilitaram sua aceitação, como seu contorno supostamente científico e os privilégios educacionais e sociais da elite branca que predominou entre seus primeiros seguidores.

Nas cinco décadas seguintes à sua chegada, o espiritismo passou a ser reconhecido pela população mais ampla — mais uma vantagem em um ambiente jurídico hostil, ainda dominado pelo catolicismo, de acordo com Lewgoy.

O espiritismo consolidou suas raízes no Brasil com a criação de instituições, a prática de oferecer assistência social e a popularização de livros escritos por médiuns (termo criado por Kardec para designar os "intermediários" entre os vivos e os mortos).

E aí, veio o boom, o crescimento acelerado. Para Lewgoy, isso ocorreu entre 1970 e 2010.

A primeira amostragem do Censo a identificar espíritas registrou 460 mil adeptos em 1940 — saltando para 3,8 milhões em 2010. Foi um avanço de mais de 720%. A população brasileira aumentou nesse período também, mas em menor escala, de 360%.

"Houve uma penetração nas classes médias urbanas, uma sincretização com religiosidades populares e uma concorrência direta com o catolicismo em declínio. A estratégia foi ocupar o vácuo deixado pelos católicos, oferecendo uma forma de modernidade religiosa para as classes médias em ascensão", avalia o antropólogo.

De acordo com ele, com o avanço da urbanização no país, funcionários públicos, professores, militares e profissionais liberais das classes nas cidades encontraram no espiritismo uma "religiosidade ao mesmo tempo 'moderna' e 'respeitável', distinta do catolicismo oficial mas não revolucionária socialmente".

Além disso, o espiritismo foi visto como uma alternativa "racional" e "científica" aos dogmas católicos tradicionais, acrescenta ele.

"O espiritismo brasileiro conseguiu conciliar elementos aparentemente contraditórios: ciência e religião, tradição e modernidade, nacionalismo e universalismo, erudição e popularização. Essa plasticidade foi decisiva para seu enraizamento", aponta Lewgoy.

Autora do livro Afinal, Espiritismo é Religião?, a historiadora e socióloga Célia da Graça Arribas, professora na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), lembra que há até termos que brincam com a adaptação bem-sucedida do espiritismo a um país predominantemente católico, como a existência de pessoas "espiritólicas" ou "catoespíritas".

Ela destaca ainda a mistura do espiritismo com crenças afrobrasileiras, sobretudo a umbanda, e o surgimento de líderes espíritas que contribuíram para "popularizar e tornar nacional a doutrina".

Médiuns famosos como Chico Xavier (1910-2002), Bezerra de Menezes (1831-1900) e Divaldo Franco (1927-2025) conseguiram de certa forma "abrasileirar" o espiritismo.

O palestrante e escritor espírita Ricardo Ribeiro Alves também destaca o sincretismo religioso presente no país e como o espiritismo prosperou nesse terreno.

"Um país como o nosso tem antepassados europeus que trouxeram a Igreja Católica, antepassados negros que da África trouxeram as religiões e os rituais de origem africana, e também a presença do indígena com seus rituais próprios", contextualiza.

Por conta da diferença entre a religião criada por Kardec e suas transformações e interseções com outras religiões no Brasil, é comum que pesquisadores usem o termo "kardecismo", em vez de "espiritismo", para se referir ao espiritismo nascido na França.

No resto do mundo

'Mesa girante' em Leipzig; em países como a Alemanha, sucesso do espiritismo esbarrou no domínio protestante

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A doutrina religiosa, contudo, não floresceu com a mesma força em outros países.

Na França, tanto o "laicismo republicano" quanto a "força da Igreja Católica" acabaram por inibir "o desenvolvimento de um espiritismo de massas como o brasileiro", aponta Lewgoy.

Lá, os adeptos continuaram sendo um grupo restrito de intelectuais e membros da elite.

Já em países como Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, o espiritismo se deparou com o domínio protestante.

"Não havia o mesmo contraste com um catolicismo dominante que, no Brasil, serviu de impulso para o seu crescimento", diz o professor da UFRGS.

Outros países católicos, contudo, são lugares de Igreja mais controladora. É o caso de Itália, Espanha e Portugal.

Nesses lugares, não houve o florescimento — mesmo que sob repressão — de diferentes práticas religiosas como no Brasil, nem o sincretismo que acabou abrindo espaço para a convivência entre crenças e culturas diversas.

Aqui, apesar do controle religioso católico ter sido uma marca desde o início da colonização portuguesa, mesmo no meio dito católico outras práticas conviveram e ainda convivem.

Se já havia espaço e tolerância para benzedeiras, toda a sorte de simpatias e um catolicismo popular não ortodoxo, o espiritismo também conseguiu grassar.

Mesmo em países latino-americanos de história colonial similar à do Brasil, o espiritismo não pegou da mesma forma.

Para Lewgoy, isso ocorreu porque esses lugares não tiveram as condições específicas que favoreceram o espiritismo no Brasil, como o diálogo com o catolicismo popular aberto ao sincretismo e a rapidez em sua institucionalização.

E também o fato de que, em outros locais na região, o espiritismo acabou sendo fortemente rotulado como "bruxaria" ou "ocultismo".

Declínio no Brasil?

De 2010 para cá, os espíritas no Brasil caíram 0,4 pontos percentuais em sua participação no total da população, o que representa cerca de 400 mil praticantes.

Para Lewgoy, o espiritismo está atualmente enfrentando uma "concorrência tripla": a expansão dos evangélicos; a legitimação das religiões afro-brasileiras (ou seja, o seu reconhecimento, aceitação e valorização em certas camadas da sociedade); e a secularização individualista (processo em que a religião se torna menos central na sociedade, que também passa a valorizar cada vez mais o indivíduo em detrimento de vivências coletivas).

A historiadora Célia Arribas endossa a constatação sobre as religiões afro-brasileiras.

"Por muito tempo, essas pessoas se declaravam espíritas porque havia a ideia de se dizer 'espiritismo de umbanda'. Com todo esse debate mais recente de ampliação do letramento racial [maior conhecimento e consciência sobre questões raciais e sobre racismo] e do orgulho que isso gera, essas pessoas têm se identificado mais claramente como umbandistas ou candomblecistas", afirma a professora.

De acordo com o Censo, pessoas que se afirmam praticantes da umbanda e do candomblé saltaram de 0,3% para 1,1% entre 2010 para 2022.

Arribas também avalia que faltam figuras para ocupar o espaço de lideranças carismáticas como Chico Xavier. Essa lacuna acaba se espelhando na indústria cultural, com menor presença do espiritismo em filmes e novelas, aponta.

"A gente tem assistido a uma influência evangélica nesse sentido."

Por fim, Arribas ainda lembra do cenário político atual de polarização no Brasil.

"O avanço do bolsonarismo e da ultradireita expulsou muita gente do espiritismo. Muita gente ficou insatisfeita com posições retrógradas e conservadoras do espiritismo", comenta ela, destacando que pautas vistas como "de direita", como aquelas relativas ao gênero e ao aborto, acabam sendo bandeiras de políticos espíritas.

Como essas pautas vão ao encontro da doutrina espírita mais tradicional, muitos espíritas se identificam com esse espectro político.

Médiuns famosos como Chico Xavier (1910-2002) ajudaram a popularizar o espiritismo no Brasil; entretanto, especialista aponta para a falta de 'sucessores'

VALTER DE PAULA/EM/D.A PRES

Para Lewgoy, o espiritismo brasileiro vive um momento de invenção de "um novo modelo de religiosidade para o século 21", com "menos fiéis e mais influência, menos instituições de massa e mais impacto cultural".

"O Censo 2022 mostra que o espiritismo brasileiro está vivendo não uma crise, mas uma metamorfose civilizacional", argumenta ele.

Para o professor, o que está mudando é que a religião está deixando de ser nacional e popular, e voltando a ser mais restrita às elites intelectuais, artísticas e profissionais.

"Os espíritas apresentam a maior taxa de ensino superior completo [48%, versus 16% da média nacional, segundo o IBGE], a menor taxa de analfabetismo [1%, versus 6% da média] e o maior percentual de acesso à internet [96%]", cita.

"Controlam um mercado editorial de centenas de editoras e milhares de títulos. Lideram hospitais, instituições assistenciais e redes midiáticas. Influenciam o vocabulário nacional", diz, mencionando termos como "carma", "mediunidade" e "evolução espiritual".

Ainda de acordo com o antropólogo, o espiritismo pode estar "antecipando tendências pós-seculares da religiosidade contemporânea", com maior ênfase nas experiências individuais e na convergência com a ciência.

"Isso não significa que se torne a religião dominante numericamente, mas que influencie as demais com seus valores e práticas. É possível que no futuro as religiões convencionais adotem mais elementos como caridade prática, ecumenismo, diálogo com a academia e interpretação espiritualista da Bíblia, aproximando-se do ethos espírita", diz.

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