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Estudantes com autismo recorrem à Justiça após terem cota negada em universidades federais


Estudantes com autismo recorrem à Justiça após terem cota negada em universidades federais

Dois estudantes diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista (TEA) nível um — o mais leve de uma escala que vai até três — recorreram à Justiça após terem negadas as matrículas em universidades federais por meio de cotas para pessoas com deficiência.

As instituições alegaram à Justiça que os casos não se enquadravam na Lei de Cotas — que estabelece as regras para as reservas de vagas.

Júlia Porto Alvarenga, 19 anos, aprovada em Ciências da Computação na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), teve o diagnóstico de TEA questionado. A junta médica da universidade que a avaliou disse que ela tinha transtorno de ansiedade social, e negou a matrícula pela cota para pessoas com deficiência.

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Davi Ramon da Silva, 22 anos, aprovado em Medicina na Universidade Federal de Alagoas, foi barrado pela banca, e conseguiu se matricular após obter uma ordem judicial provisória. “Tive que provar que o que vivi a vida inteira realmente existe”, diz.

Ao g1, a UFES afirmou que segue a legislação vigente e, por isso, adota perícia médica — e não banca psicossocial — porque ainda não existe instrumento nacional unificado para esse tipo de avaliação, que está em discussão pelo governo federal. A universidade disse que laudos particulares são aceitos apenas como indício, mas não têm valor isolado para comprovação de deficiência, cabendo a confirmação a uma junta médica própria, que aplica critérios do DSM-5. A instituição acrescentou que acompanha os debates ministeriais sobre o tema, criou a Secretaria de Inclusão Acadêmica e Acessibilidade em 2023 e mantém políticas de cotas, reforçando o compromisso com a inclusão e a igualdade de oportunidades.

A UFAL não retornou até a última atualização desta reportagem.

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Organizações de promoção dos direitos de pessoas com autismo ouvidas pelo g1 relatam que situações semelhantes ocorrem em outros estados.

"Essas negativas indevidas ao direito de concorrer pelas cotas PcD [sigla para pessoa com deficiência] têm se tornado prática reiterada em diferentes universidades públicas do país”, diz Guilherme de Almeida, da organização Autistas Brasil e que integra o Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Temos recebido relatos esparsos de situações semelhantes em outras universidades no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia".

Para a pesquisadora Laura Ceretta, que atua desde 2006 em bancas de avaliação e comissões de inclusão na Universidade Federal do Paraná (UFPR), diz que há uma dificuldade maior de perceber as limitações no caso de autistas de nível um.

“O nível um também enfrenta restrições, muitas vezes invisíveis no primeiro contato, mas que impactam de forma real a vida acadêmica”, afirma.

Especialistas ouvidos pelo g1 afirmam que a ausência de uma diretriz nacional para avaliação, prevista há dez anos na Lei Brasileira de Inclusão, mas nunca elaborada, é um dos motivos que levam a esses conflitos. Sem essa norma, cada universidade define os critérios de avaliação.

Esses especialistas defendem também capacitação das bancas que fazem as avaliações dos candidatos, padronização de editais e criação de um observatório nacional para reunir dados sobre acesso e permanência de pessoas com deficiência no ensino superior.

Nesta reportagem você vai ver:

As razões das negativas a estudantes autistas nas cotas para pessoas com deficiência

Namoro e

O que dizem universidades e os ministérios da Educação e dos Direitos Humanos,

As possíveis soluções, segundo especialistas

As razões das negativas a estudantes autistas nas cotas PcD

Professora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) e ex-coordenadora do Programa de Diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, Patrícia Beltrão afirma que é mais difícil perceber o autismo quando ele é de nível um.

Nesse nível, as principais evidências são a dificuldade de socialização e de leitura. Para comparação, no nível três, a pessoa com autismo pode precisar de suporte para escovar os dentes ou fazer uma refeição.

“O diagnóstico do autismo, especialmente no nível um, costuma ser tardio, já que as dificuldades podem ser sutis — há casos em que a confirmação vem apenas na vida adulta, às vezes em idade avançada. Isso significa que muitas pessoas podem viver grande parte da vida sem saber que são autistas”, afirma.

Além dessa menor visibilidade da deficiência, especialistas ouvidos pelo g1 afirmam a falta de um instrumento nacional de avaliação biopsicossocial, previsto há dez anos pela Lei Brasileira de Inclusão (LBI) e nunca regulamentado, dificulta o trabalho das bancas que avaliam os candidatos a cotas por deficiência.

Sem essa diretriz, cada universidade federal define seus próprios critérios — que vão de perícias médicas a bancas —, muitas vezes baseando-se num decreto de 1999 que estabelece a identificação de deficiência por meio de laudos médicos, exclusivamente, e não de uma análise que leve em conta questões psicológicas e sociais, conhecida como modelo biopsicossocial.

É o que mostra um estudo da pesquisadora do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, Adriana Pagaime, que mapeou os critérios de elegibilidade da política de cotas do Sistema de Seleção Unificado (Sisu) para estudantes com deficiência em 62 universidades federais.

"Na prática cada universidade se adapta como pode. Universidades com grupos de estudo na área da deficiência e da educação especial — e que já aplicavam cotas para pessoas com deficiência antes do Sisu — tendem a ter procedimentos mais próximos do modelo biopsicossocial. Porém, a norma do Sisu ainda se baseia diretamente no Decreto 3.298/1999, que define a deficiência a partir de critérios médicos”, aponta.

Para Laura Ceretta, da UFPR, o modelo biopsicossocial é o mais adequado.

“As universidades já têm condições de discutir propostas a partir de um olhar biopsicossocial, superando a visão restrita ao aspecto clínico e incorporando o modelo social, que coloca a pessoa antes da deficiência. Esse movimento está alinhado à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que traz esse conceito e serve de base para um trabalho mais unificado”, reforça Laura Ceretta, da UFPR.

Estudantes com autismo recorrem à Justiça após terem cota negada em universidades federais

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Banca cita namoro para barrar vaga a autista

Júlia Porto Alvarenga, 19 anos, descobriu que era autista de nível um em 2023, durante tratamento psicológico. No ano seguinte, foi aprovada pelas cotas para pessoas com deficiência em Ciências da Computação na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), com ingresso previsto para 2025.

Júlia, então, foi convocada para ser avaliada por uma junta médica da UFES.

Segundo a estudante, a entrevista, feita por dois avaliadores, não teve perguntas estruturadas.

“Cheguei, sentei e comecei a falar. Uma das avaliadoras me olhava com cara de deboche. Contei sobre minhas dificuldades. No final, só perguntaram se eu tinha mais algo a dizer.”

O parecer da junta médica concluiu que “o diagnóstico de TEA não está corroborado” e disse que Júlia tinha um “transtorno de ansiedade social”. E justificou a negativa citando que Júlia “estabeleceu e mantém relações de amizade, além de um relacionamento amoroso com duração aproximada de dois anos”.

Além disso, questiona a validade dos laudos apresentados. “Laudos médicos, na esfera da Psiquiatria Forense, são relatórios clínicos erigidos sob o paradigma da confiança, em que, a princípio, o médico assistente crê no que o paciente lhe relata. Na avaliação pericial, reveste-se de maior importância a verificação de elementos que comprovem este relato.”

Júlia foi à Justiça. A primeira juíza que avaliou o caso considerou suficientes o laudo neuropsicológico e o relatório psiquiátrico e determinou que a UFES realizasse a matrícula.

A universidade, entretanto, recorreu, e reverteu a decisão. O desembargador que avaliou o caso entendeu que a estudante não conseguiu comprovar "prejuízo funcional clinicamente significativo no tempo presente” e autorizou a UFES a cancelar a vaga até nova perícia. O processo segue em andamento.

Desde então, sem matrícula ativa, Júlia segue acompanhando as aulas com apoio de colegas e professores, mas sem registro oficial de presença ou notas.

“Se não fossem meus amigos baixando e me enviando o material, eu ficaria de fora”, disse a estudante.

Morador da zona rural de Arapiraca (AL), Davi Ramon da Silva, 22 anos, teve diagnóstico de autismo nível um em novembro de 2023. Em 2024, foi aprovado em Medicina na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), mas teve a matrícula negada após uma avaliação online de cerca de uma hora e meia, conduzida por sete avaliadores.

“Parecia que já havia um pré-julgamento… não me encaixava no que esperavam de uma pessoa autista”, afirma.

Na entrevista, Davi relatou alfabetização tardia, dificuldades de socialização e barreiras na leitura. Mesmo assim, a comissão indeferiu o pedido por entender que faltavam barreiras significativas.

Os laudos apresentados pelo estudante — de um neurologista e de uma psicóloga — descrevem limitações na comunicação e interação, além de histórico de dificuldades motoras e de alfabetização. A universidade, no entanto, afirmou ter adotado a perspectiva biopsicossocial e não ter identificado restrições de participação que justificassem a vaga reservada.

A Justiça Federal de primeira instância determinou a matrícula, destacando que o TEA, inclusive no nível um, é legalmente reconhecido como deficiência. “Se o candidato com TEA, com muito esforço e apesar das barreiras diárias, é aprovado em Medicina, é um contrassenso a universidade dizer que não há barreiras”, afirmou a juíza Camila Monteiro Pullin na decisão.

A universidade recorreu e o processo também segue em andamento.

O que dizem o MEC, Direitos Humanos, e as universidades

Ao g1, a secretária nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Anna Paula Feminella (MDHC), reconhece que ainda há entraves na avaliação feita por bancas de candidatos com deficiência, e que isso leva à judicialização.

A secretária diz ser “ponto pacífico que pessoas autistas são pessoas com deficiência” e que, no nível um, cabe às bancas aferirem barreiras “muitas vezes sutis, ligadas a estigmas e à hostilidade no ambiente acadêmico” — sem discriminar. “É o paradoxo de o candidato ter bom desempenho e ainda assim ser indeferido, ignorando todo o esforço invisível desse indivíduo”.

Anna Paula diz que há um grupo de trabalho no ministério que busca padronizar essas avaliações usando o Índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBrM), baseado na Classificação Internacional de Funcionalidade da Organização Mundial de Saúde (OMS) e que já é usado, por exemplo, pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) em suas perícias.

Além disso, a pasta trabalha para capacitar servidores que participam das bancas e no desenvolvimento de um aplicativo que vai centralizar os dados de análises dos candidatos. A proposta é que, feita uma vez, a avaliação não precise ser repetida em cada serviço ou política pública.

O Ministério da Educação (MEC) diz que finaliza trâmites internos para formalizar parceria com o MDHC, que ficará responsável por capacitar profissionais para atuação em bancas nas universidades federais.

A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) afirma que as federais seguem a legislação, e que elas têm autonomia para fazer as avaliações.

As soluções possíveis, segundo especialistas

Uso de índice nas bancas

Um modelo já existe: o Índice de Funcionalidade Brasileiro (IFBr), coordenado pela Universidade de Brasília e usado pelo INSS. Baseado na Classificação Internacional de Funcionalidade da OMS, mede o grau de limitação considerando aspectos clínicos e barreiras sociais, ambientais e comunicacionais. Embora seja público, ainda não é adotado oficialmente pelas universidades. O Ministério dos Direitos Humanos quer implementar uma versão adaptada, o IFBrM, como parte da padronização das bancas.

Melhorias nos editais

Editais podem impor barreiras antes mesmo da avaliação. Um exemplo ocorreu na Universidade Federal do Acre (UFAC), onde Alessandra Machado, mãe de João Batista, de 21 anos, aprovado para História, esbarrou em uma regra que exigia laudo médico emitido há no máximo 90 dias para poder se matricular pela cota. O prazo, segundo ela, é inviável no SUS, onde a fila de espera pode se estender por meses, e oneroso no setor privado. “Essa exigência mostra despreparo… não se consegue laudo assim da noite para o dia”, afirma.

Após solicitação da Defensoria Pública da União (DPU), a UFAC mudou o edital e João pôde se matricular. A pesquisadora Adriana Pagaime encontrou casos semelhantes, como exigência de teste de QI ou assinatura de dois médicos. “Considerando o contexto do Brasil, como um candidato vai conseguir agendar essas duas consultas no prazo que a instituição exige?”, questiona.

Ao g1 a UFAC informou que exige laudos médicos emitidos nos últimos 90 dias para candidatos às vagas de pessoas com deficiência, mas abriu exceção para casos de Transtorno do Espectro Autista (TEA), em que o prazo não se aplica. Segundo a universidade, a regra busca garantir informações clínicas atualizadas e fidedignas, e até o momento não sofreu contestações. A instituição afirmou ainda que está planejando capacitações para sua comissão a fim de aplicar o modelo biopsicossocial, e reafirmou o compromisso com a política de cotas PcD e com a busca por maior equidade no acesso ao ensino superior.

Gravação das bancas

A gravação das entrevistas é apontada como essencial para garantir transparência e permitir a revisão do processo por avaliadores que não participaram da decisão inicial. Para a professora Laura Ceretta, da UFPR, o registro permite rever a avaliação quando há recurso, garantindo análise por pessoas que não participaram da banca e evitando vieses. “Embora seja difícil para algumas pessoas admitir, a banca não pode ser soberba: precisa ter a humildade de olhar para si e para o próprio processo”, afirma.

Capacitação das bancas

O Ministério dos Direitos Humanos afirma já ter treinado mais de mil servidores e estar desenvolvendo um aplicativo para centralizar dados das bancas. Para Adriana Pagaime, é preciso também criar um instrumento unificado e definir quem está apto a aplicar a avaliação biopsicossocial. “Sem capacitação e critérios claros, vamos continuar com negativas indevidas e concessões a quem não é público-alvo”, afirma.

Observatório

Especialistas defendem a criação de um observatório nacional sobre acesso e permanência de pessoas com deficiência no ensino superior.

“Um observatório poderia sistematizar dados, mapear situações e apoiar políticas públicas, ajudando MEC e universidades a compreender a complexidade do tema e avançar em soluções alinhadas à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”, afirma Laura Ceretta.

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