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Exposição ao ridículo e violência simbólica: por que Nattan pagar R$ 1 mil por beijo em mulher com nanismo é capacitismo, segundo especialistas


Cantor Nattan paga R$ 1 mil para homem beijar mulher com nanismo em show; VÍDEO

Uma atitude do cantor Nattan num show em São Lourenço da Mata, no Grande Recife, gerou um debate sobre capacitismo. O artista colocou uma mulher com nanismo no braço, jogou para cima e, em seguida, ofereceu ao público um PIX de R$ 1 mil para quem a beijasse (veja vídeo acima).

Embora a mulher envolvida, a influenciadora Delicinha, tenha consentido e recebido dinheiro para participar, a Associação Nanismo Brasil (Annabra) repudiou o ato, ao qual se referiu como "exposição ao ridículo". Além disso, afirmou que o caso abre espaço "para a perpetuação do preconceito e da violência simbólica" (entenda mais abaixo).

Esse episódio também reforça um estereótipo no imaginário das pessoas, segundo o advogado João Maurício Rocha, presidente da Comissão de Defesa da Pessoa com Deficiência da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE).

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O vídeo da cena, que aconteceu no sábado (2), foi postado no perfil de Nattan no Instagram, com a legenda "BEBÊ REBORN saliente da gota", frase editada posteriormente para "casal saliente da gota".

As imagens mostram quando Nattan pega a mulher no braço e a joga para cima antes de colocá-la em cima de um caixote e convidar um homem, que estava nos bastidores, para beijar a moça, mas ele não aceitou. Em seguida, o cantor chama, na plateia, um cinegrafista, que aceita o dinheiro e beija a influenciadora. Durante o beijo, o artista ri em cima do palco.

Com a repercussão do caso, Nattan comentou — e depois apagou — numa postagem no Instagram do g1 dizendo que pagou R$ 1 mil para a mulher e para o homem que a beijou.

"Sempre é R$ 1 mil para o casal. E faço isso em quase todo show e com todo mundo. Sobe no palco e beija quem quer ❤️. E os anões [sic] podem colar comigo aí que aqui é só benéfico", disse o cantor, citando uma palavra que, para pessoas com nanismo, é considerada ofensiva (entenda mais abaixo).

Ao g1, a influenciadora Delicinha, de 47 anos, contou que trabalha como influenciadora e humorista há cerca de dez anos. Ela foi à Festa de Agosto se divertir e afirmou que pediu para subir no palco.

Também disse que sempre gostou de interagir com cantores em shows e que já beijou outros homens em eventos semelhantes, sempre com consentimento.

"Ele não forçou ninguém a nada. Eu sei dos meus direitos, implorei para subir no palco, não considero que fui exposta ao ridículo e estou feliz demais porque o vídeo viralizou e Nattan postou no Instagram dele. Ele me fez um bem, e eu fiz porque quis, amo subir em palco", contou a influenciadora.

Delicinha afirmou, ainda, não entender o porquê da polêmica, e criticou a nota da Annabra.

"Já trabalhei como cobradora, caixa, em posto de gasolina. Ninguém nunca me procurou para perguntar sobre adaptação às empresas, meu dia a dia, ou como eu sou tratada na rua. Acho que tudo isso é porque ele é muito famoso, o vídeo viralizou e ele está em alta", declarou.

Associação

Cantor Nattan paga R$ 1 mil para homem beijar mulher com nanismo em show

Reprodução/Instagram

Em nota, a Annabra disse que o fato de uma pessoa com nanismo consentir ou participar de uma cena como essa não significa que toda a comunidade aceite ou ache engraçado. "Normalizar este tipo de 'entretenimento' é abrir espaço para a perpetuação do preconceito e da violência simbólica, minando os avanços que temos conquistado com tanto esforço", declarou no texto

Presidente da associação, Kenia Rio conversou com o g1 e reforçou que o consentimento de Delicinha não muda o fato de a cena ser um "flagrante de capacitismo", porque pessoas com nanismo sofrem de um preconceito estrutural, e que as atitudes individuais não representam as dores e a luta de toda a comunidade.

"Se ela topou ou não, a questão é dela. Ele é um homem público e a desmereceu, como se beijar uma pessoa com nanismo fosse tão terrível que tem que pagar. Ao botar ela no braço e jogar para cima, ele não tem noção dos riscos, dos problemas nos ossos que a gente tem e o que pode acontecer com ela se ela tomasse um tombo", afirmou a presidente da Associação Nanismo Brasil.

Kenia também contou que já moveu ações na Justiça contra humoristas e pessoas famosas. Além disso, afirmou que, por vezes, a pessoa que sofre o preconceito sequer percebe.

"Ela foi exposta a uma situação vexatória. O pessoal que estava no show riu, e não aplaudiu. Foi uma situação de ridicularização, um flagrante de capacitismo. A gente preserva nossa imagem por isso. Eu não posso me responsabilizar por quem aceita esse tipo de situação, mas, pelos que eu cuido e represento [por meio da associação], a gente não aceita", contou.

Sobre o comentário de Nattan no Instagram do g1, Kenia lembrou que a palavra "anões" é pejorativa justamente por carregar conotação histórica negativa e associada a estereótipos e piadas.

"Essa parte é particularmente grave. O uso do termo 'anões' de forma genérica e a promessa de 'benefícios' reforçam estereótipos, tratando pessoas com nanismo como mascotes ou atrações, e não como indivíduos com direitos, autonomia e dignidade", explicou.

Ela contou, ainda, que ao dizer que faz isso "em quase todo show e com todo mundo" e que "sobe no palco e beija quem quer", Nattan ignora as especificidades que ocorreram nesse caso, por envolver uma pessoa com nanismo.

"A naturalização da prática, como se fosse parte de uma rotina de shows, não retira o caráter ofensivo quando envolve grupos historicamente marginalizados, como as pessoas com nanismo. [...] A ideia de 'quem quer' ignora o contexto de pressão social e o desequilíbrio de poder entre um artista famoso e pessoas do público, especialmente quando há incentivo financeiro", declarou.

Ainda segundo a presidente da Annabra, comumente, o preconceito contra pessoas com nanismo é normalizado e usado como piada.

"Não brincam com cadeirante, por exemplo, e por vezes falam que sequer sabiam que nanismo é uma deficiência. Sempre somos o alvo, e somos raros, porque somos um a cada 20 mil nascimentos. Hoje, uma porção de crianças é vítima de bullying porque tem gente normalizando o preconceito", declarou.

OAB

O advogado João Maurício Rocha contou que o vídeo publicado por Nattan demonstra "uma maneira jocosa de se tratar a pessoa com deficiência, sem ter a intimidade necessária para saber se a pessoa se sente confortável". Ele disse, ainda, que esse caso remonta ao período dos "circos dos horrores".

"Eram pessoas altas demais, com nanismo, com outras deficiências, expostas no 'circo dos horrores'. Aquela situação acaba por ser constrangedora para a pessoa e acaba por reforçar um estereótipo no imaginário das pessoas, porque a sociedade é culturalmente excludente com quem não segue o padrão imposto", declarou.

Ele também disse que, mesmo com o consentimento de Delicinha, essa situação pode ser vista como uma violação das pessoas com deficiência, especialmente por membros da comunidade.

"Em tese, seria uma brincadeira, mas que expõe as pessoas com deficiência, com nanismo, ao ridículo. De fato, aquela atitude fez com que pessoas com deficiência se sentissem violadas e incomodadas com a brincadeira. [...] Por ela ser influenciadora e, de maneira consentida, tenha sido exposta, deve ser a intenção dela. Mas, para as pessoas com deficiência, acredito que tenha transparecido como uma coisa mais pejorativa", afirmou.

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